O Ataque ao Lunho ( 23/09/71)

(Tal como eu o “vi” e guardo na memória)


Tínhamos acabado de chegar ao Niassa, a 12 de Agosto/71, “chequinhas” de todo. Checa era a palavra que, em Moçambique, designava o Maçarico, o novato, o recém-chegado. Ficou a CCS em Metangula, verdadeira estância turística, enquanto as Companhias 3393 e 3392 foram para Nova Coimbra e Lunho, respectivamente. Estávamos no período de adaptação à guerra propriamente dita. Até ali tudo não passava de teoria, agora as coisas eram mesmo a sério e muito diferentes de tudo o que se tinha aprendido durante os meses de “prática” no pacífico rectângulo europeu. Agora eram mesmo as nossas vidas que se encontravam em jogo. Os conselhos dos “velhinhos” eram escutados atentamente e cada um procurava tirar destes conselhos o maior partido possível. Velhinhos eram os militares que nós, Checas, íamos render nas respectivas missões, e que já tinham muitos meses de Ultramar e, por isso mesmo muita experiência. Ouvi-los era um acto de inteligência e que apenas nos poderia trazer alguma vantagem. Casos houve, muitos, em que o desprezo por estes conselhos teve consequências bem trágicas.
Ainda não tinha decorrido um mês e o Major Z, que tinha no Lunho um primo, o Furriel S, decidiu dar repouso aos operacionais do Lunho. Criou um sistema de rotação em que um pelotão do Lunho era substituído por um pelotão da CCS. Na CCS apenas haviaum Pelotão de Reconhecimento (Pel.Rec.) e foi a este que tocou a sorte de substituir o pelotão do Lunho. Claro que a ideia caiu na CCS como uma bomba. A CCS era conhecida, na gíria militar, como os heróis do arame farpado. Estávamos todos convencidos que a acção militar se limitaria a fazer as picagens nas deslocações entre as nossas companhias – Nova Coimbra e Lunho. Puro engano, em menos de um mês aí vai um pelotão para o pior buraco do Batalhão e um dos piores do Niassa – o famoso Lunho.
Quando a ordem surgiu não faltaram manifestações de desagrado. Nenhum dos visados gostou da ideia, bem pelo contrário. Maldita sorte! Este desagrado era potenciado pela intenção que estava por trás desta decisão. Todos sabíamos que a verdadeira finalidade era dar algum privilégio ao primo do major. Como era possível que ainda não tivesse decorrido um mês e já houvesse necessidade de dar descanso a pelotões do Lunho. Não tinha decorrido qualquer acto de guerra que justificasse tal decisão. A indignação ia bem para além dos directamente visados nesta artimanha.
Mas, a tropa é assim mesmo, manda quem pode e obedece quem deve.
Claro que o pelotão do Lunho que foi rendido era o do primo do Major.
Lá foram para o Lunho os heróis do arame farpado, bem a contra gosto.
No famoso dia 23, à noite, a vida corria como de costume. Na messe de Sargentos e Oficiais celebrava-se o nascimento de um filho do 1º Sargento Jesus (de Chaves) e a noite foi de farra! A comida mas, principalmente a bebida, foi até dizer, chega.Quando a festa acabou poucos seriam, ou nenhuns, os oficiais e sargentos que estivessem sóbrios. Tinham comido bem e bebido ainda melhor. Foi uma bebedeira quase geral. Aos tropeções, acabada a festa, dirigiram-se para as camas em que a maior parte caiu sem ter já tino para se despir. Adormeceram como anjos – anjos trôpegos, claro..
Nas guaritas as sentinelas iam olhando para o vazio sonolentamente. Nessa noite o pessoal de serviço era todo da CCS e uma das sentinelas era o Miraldo. De olhos arregalados perscrutava a escuridão do mato. Qual sono qual carapuça! Estava bem atento, o Lunho não permitia descuidos, só a sua fama era suficiente para despertar o mais sonolento dos soldados. Ainda por cima estávamos muito próximos do aniversário da Frelimo. Face à aproximação desta data as ordens eram mesmo de aumentar o cuidado e reforçar até as vigias. A Frelimo costumava, no seu aniversário, efectuar sempre alguma acção que pudesse dar algum estrilho na imprensa, nacional e internacional. O problema era que nunca se sabia onde iria ser efectuada essa acção pelo que todos os quartéis estavam de sobreaviso e prevenção para esta eventualidade.
Entre a meia-noite e a uma da nanhã, o Miraldo que, juntamente com o Barbeiro e o Carvalho, se encontrava de sentinela num posto avançado, constituído por dois bidões de areia e troncos atravessados, começou a ver, ao longe, na direcção do rio Lunho, umas luzes a movimentar-se. Estas luzes apareciam e desapareciam por trás dos arbustos, tornando-se, assim, intermitentes. Alertou os colegas e com a HK21, que havia naquele posto, fez alguns disparos na direcção das luzes. Estes disparos, efectuados tiro a tiro sem que houvesse qualquer resposta, alertaram o pessoal e não tardou que aparecesse o Capitão Lapa e o Furriel Martins, da CCS, para averiguarem a razão dos mesmos. Informado do avistamento das luzes o Capitão Lapa deduziu tratar-se de pirilampos e quase repreendeu o Miraldo por ter disparado.
- Vocês são checas e estão com medo. Ainda não estão habituados a isto-. Checas éramos todos, queria ele dizer que, por se tratar de pessoal da CCS, reagiam como “heróis do arame farpado” sem o calo dos soldados do Lunho. Dito isto, e como tudo tinha um aspecto normal, retirou-se juntamente com o Furriel.
O Miraldo, não muito convencido, continuou a fazer a sua vigia concentrando a sua atenção na direcção das luzes que tinha visto.
Perto das três da Manhã as luzes voltaram a aparecer mas desta vez já muito próximas da Companhia de Engenharia e, além das luzes, conseguiu vislumbrar também alguns vultos. Não, não havia dúvidas, não eram pirilampos, andava por ali alguém e este alguém apenas podiam ser guerrilheiros (Turras) sem boas intenções. Alerta os colegas e com a HK21 começa a fazer fogo de rajada na direcção dos vultos e luzes. Do meio do mato respondem as Kalashnikov em direcção ao ao quartel.
Das outras guaritas, alertados pelos tiros, começaram também a disparar e tornou-se infernal o barulho que este tiroteio provocava. Não tardou nada e todos os postos de sentinela disparavam desenfreadamente no sentido das luzes que os tiros das Kalashnikov rasgavam na escuridão.
No silêncio da noite aqueles disparos soaram como trovões. O pessoal que dormia nas casernas acordou sobressaltado sem se aperceber bem do que se passava. Mas foi um instante! Apressadamente pegaram nas armas e cartucheiras e, muitos ainda meio despidos, correram para os abrigos que previamente lhes tinham sido atribuídos onde foram engrossar o terrível trovão do tiroteio. No meio deste barulho infernal mas sobrepondo-se-lhe ouviu-se uma formidável explosão. - A ponte do Lunho (Ex-Libris daquele lugar) acabava de ir pelos ares.
Os sargentos e oficiais ainda “anestesiados” acordaram atarantados, sem saber a razão dos disparos. A forte explosão chamou-os num ápice à realidade. Era um ataque não havia dúvida. Pegaram nas armas e cartucheiras e toca a andar em direcção aos abrigos. O tiroteio era cada vez mais intenso com a chegada do pessoal vindo das camaratas.
Ainda não tinham chegado todos aos abrigos quando começam a cair bombas de armas pesadas. Uma perto da messe mas do lado de fora do quartel, outra perto da caserna e outra perto das transmissões e parque auto mas também do lado de fora do quartel. Embora perto nenhuma acertou nos alvos mas continuavam a cair cada vez mais perto, umas ao lado e outras dentro do quartel. O tiroteio aumentava e distinguiam-se perfeitamente os disparos das G3, das Kalashnikov e das metralhadoras pesadas que se encontravam nas guaritas. A estes disparos sobrepunham-se as granadas das armas pesadas que iam caindo cadenciadamente cada vez mais perto dos respectivos alvos.
O Tigre, um soldado negro, apontador de morteiro, instala o morteiro e começa a ripostar com morteiradas na direcção em que lhe parecia estarem colocadas as armas pesadas dos guerrilheiros. Segundo se dizia na altura, o Tigre chegava a colocar no ar 10 granadas de morteiro antes que a primeira rebentasse. Quando a primeira caía seguia-se uma cadência impressionante de morteiradas. Para além da cadência o Tigre foi de uma felicidade extrema pois passado pouco tempo deixaram de se ouvir as bombas das armas pesadas. Restava apenas o tiroteio das guaritas e abrigos e resposta das Kalashnikov. A noite foi avançando e o dia começou a dar os primeiros sinais de querer nascer. As munições começavam a escassear e muitos tinham mesmo gasto todas as cartucheiras de que dispunham.
Os guerrilheiros, face ao silêncio das suas armas pesadas e perante a resposta firme do quartel vendo gorados os seus intentos procuraram embrenhar-se no mato e pôr-se a salvo. O pessoal do quartel, agora mais encorajado ao pressentir a fuga dos guerrilheiros, redobrou o tiroteio e este só parou quando deixaram de ouvir as Kalashnikov.
Pouco a pouco foi-se estabelecendo o silêncio e, com os primeiros alvores da manhã, todos os olhos procuravam indícios da presença dos guerrilheiros. Nada! Todos se tinham posto a salvo no meio do mato, o seu elemento natural.
Tudo isto não durou mais que uma hora mas foi, sem dúvida, a hora mais comprida da vida de quantos a viveram.
Foi feita uma verificação geral e concluiu-se que não havia feridos da nossa parte. Tomaram-se medidas para prevenir novos ataques. Com a chegada do dia e o silêncio instalado começaram, finalmente, a bater mais devagar os corações daqueles bravos soldados que, apesar da falta de experiência deram uma prova enorme de coragem e valor. Tinham ganho a primeira batalha das suas vidas e pelas suas vidas.

Numa inspecção mais pormenorizada verificaram-se muitas paredes com estilhaços das granadas das armas pesadas e alguns estragos de material mas nada de muita monta. Feita a verificação no exterior viram-se muitos rastos de sangue. A ponte, a famosa ponte do Lunho, apresentava um rombo que a tornava intransitável. Um dos tramos da ponte tinha voado e repousava a uns bons metros de distância.
Concluiu-se depois que o ataque tinha sido planeado ao pormenor, da seguinte forma:
- Para os lados do Chissindo, sobranceiro ao vale em que se encontrava o quartel, os guerrilheiros tinham instalado três armas pesadas, dois obuses e um canhão sem recuo (ou dois canhões sem recuo e um obus) dirigindo-as para os pontos estratégicos: Messe de sargentos e oficiais e transmissões, que sencontravam perto umas das outras; casernas dos soldados; parque de viaturas. Estas armas foram colocadas durante o dia e direccionadas com todo o cuidado;
- Durante a noite os guerrilheiros procuraram envolver o quartel tentando ocupar posições que lhe dessem alguma vantagem sobre o quartel;
- O ataque seria despoletado pelas armas pesadas estando já colocados no terreno os guerrilheiros que após os primeiros rebentamentos apanhariam, de surpresa, os nossos soldados a sair das casernas em direcção aos abrigos.
A acção destinava-se mesmo a tomar o quartel do Lunho ou, pelo menos, causar elevados danos, Foi o caso da ponte que era a menina dos olhos da companhia e, constituiu, por si só, um pesado revés. .
Veio a saber-se mais tarde que naquele ataque foram mortos cinco guerrilheiros e dois vieram a morrer em função dos ferimentos sofridos. Também no sítio onde estiveram montadas as armas pesadas se vieram a verificar muitos rastos de sangue. O Tigre acertou em cheio!
E agora fica a pergunta que me não sai da cabeça desde aquela data: O que aconteceria se não tem havido a “providencial” substituição do pelotão do primo do Major por um pelotão da CCS. Qual teria sido o desfecho? Não quero tirar ilações ilegítimas mas esta pergunta nunca mais me abandonou e não sou capaz de encontrar uma resposta. Teria sido igual o desfecho se não se tivessem sucedido estes “acasos”?
O ataque ao Lunho foi amplamente divulgado, pela sua envergadura, e pelo facto de ter sido sofrido por uma companhia que era “Checa” naquelas paragens. A tal ponto que este ataque passou a figurar, de autor que desconheço, no famoso Cancioneiro do Niassa. Nesta canção é evidenciada, sobretudo, a aflição dos “Checas” perante um tal ataque e a falta de munições que a determinado ponto se começou a sentir. Mas a verdade é que, embora Checas, portaram-se como veteranos e repeliram um dos piores ataques (para o batalhão foi mesmo o pior) que no Niassa aconteceram.
Este ataque ficou marcado de forma indelével na mente de quantos o viveram e é, ainda hoje, lembrado como um dos pontos mais significativos na passagem da juventude para a idade adulta. Foi para muitos a verdadeira perda da inocência. A partir daquele dia a vida nunca mais foi o que era.

Este texto baseia-se nos relatos que ouvi directamente dos intervenientes da CCS, neste ataque.

Amadeu Carvalho

P.S.
(Naquele mesmo local, alguns anos antes, em 31de Maio de 1965, foi alvo de uma acção semelhante a famosa Companhia 7 de Espadas – C. Cavª. 754 - de que fazia parte o, ainda mais famoso, ciclista Joaquim Agostinho. Nesse dia tiveram 6 baixas e mais uma da Companhia de Nova Coimbra que foi em seu auxílio. A Companhia de Joaquim Agostinho foi uma das que mais baixas sofreu naquela zona, a tal ponto que teve de ser evacuada para a Beira pois foi considerada inoperacional. Quando uma companhia sofria muitas baixas era considerada psicologicamente incapaz de continuar no teatro de guerra. Nesta altura ainda não existia o quartel do Lunho e as tropas ali estacionadas encontravam-se alojadas num bivaque (“aquartelamento” feito de tendas de campanha).
(Este apontamento referente à Cª 7 de Espadas foi feito com a colaboração de Eduardo Maria Nunes, do Batalhão de Caçadores 598, um dos que foi em auxílio de Joaquim Agostinho, no dia 31 de Maio de 1965. O meu agradecimento.

A Viagem



Um texto de Jorge Pires da Conceição (*)

Acabadas as seis semanas do IAO em Santa Margarida e depois do curto período de férias de “despedida desta vida”, última oportunidade também para alguns “darem o salto” (recordo um camarada que nesses 10 dias teve tempo para dar o salto, telefonar para casa já para lá dos Pirenéus, conversar com uma familiar chorosa e regressar a Tomar, aguardando o embarque no Hotel Templários), na madrugada de 17 de Julho de 1971, entre a uma e as duas da manhã, embarcámos num longo comboio estacionado no apeadeiro de Santa Margarida.
Éramos perto de mil homens os que compunham os dois batalhões de caçadores formados no RI15 de Tomar e considerados prontos, como “carne para canhão”, para o “teatro de guerra” de Moçambique.
Essa primeira etapa da nossa viagem, que decorreu até às seis ou sete horas da manhã e que terminou junto ao cais da Estação Marítima de Alcântara-Mar foi uma das mais angustiantes de que me recordo em toda a minha vida e, julgo, não só para mim, mas para muitos de nós todos, pois era a primeira prova concreta, a certeza última, de ser verdade aquilo que nos esperava: a guerra!
Dentro do comboio ainda estacionado recebemos os nossos novos galões de alferes e as divisas de furriéis. Depois, sem paragens do comboio (não fosse alguém arrepender-se), em silêncio durante toda a madrugada, enquanto nos campos e nas povoações que ladeavam a linha férrea todos dormiam indiferentes à nossa passagem, vinha-me constantemente à lembrança aquela arrepiante viagem de comboio tão bem descrita por Gabriel García Marquez, suponho que no livro “Cem Anos de Solidão”, na qual um comboio carregado de cadáveres de revoltosos atravessava de noite silenciosamente as povoações adormecidas, fazendo de conta que nada de importante se passara…
Na Gare Marítima de Alcântara a animação voltou com a presença de centenas ou de milhares de civis que traziam um último quinhão de calor aos que tinham a sorte de ali terem familiares ou amigos. Muitos vagueavam atónitos e solitários. Um destes abeirou-se da minha mãe e, perguntando-lhe se era de Lisboa, logo inquiriu se conhecia a Maria, uma rapariga de Viana do Castelo que servia em Lisboa e que, embora ele pessoalmente não a conhecesse, lhe traria recados ou uma encomenda de seus pais que viviam no Minho…
O ambiente de pré-embarque, comum a todos eles e bem descrito por Fernando Assis Pacheco em “Walt”, com as senhoras do Movimento Nacional Feminino a surgirem-nos a bordo do “Niassa” antes de largarmos amarras e onde os soldados – porventura os que não tinham ninguém a despedir-se deles – gritavam imitando as pessoas no cais “Ai, o meu rico filho que…” e derivados mais tenebrosos…
O “Niassa”!… Simultaneamente o símbolo do prelúdio da guerra e a garantia de ela não se iniciar antes de decorridos 26 dias de viagem! Um interlúdio simultaneamente de frustração, de desespero, de conforto na (ainda) segurança, de expectativa do que iríamos enfrentar e, no meu caso pessoal, do modo como eu iria conseguir “trocar as voltas à guerra no terreno”, de modo a que a que minha contribuição para o seu sucesso, na perspectiva das NT, fosse a menor possível.
O “Niassa”, navio preparado para 22 passageiros em 1ª classe e trezentos em turística, com 132 tripulantes, perfazendo um total inicialmente estimado de 454 pessoas a bordo e transportando, na verdade cerca de 2.500 (!), resultado de terem embarcado dois batalhões de caçadores, uma companhia de paraquedistas, uma companhia de polícia militar, alguns pelotões de reconhecimento, de armas pesadas de infantaria, etc.. A 1ª classe ficou preenchida com os oficiais de patente a partir de capitão, enquanto que os oficiais subalternos, os sargentos e os furriéis ocupavam a classe turística. Os soldados e cabos, desde a primeira hora “carne para canhão”, foram metidos em andares nos insalubres porões (acabando muitos deles por preferirem dormir ao relento nos convés…).
Esta etapa da viagem, interlúdio multifacetado, como disse, entre os tempos de tropa e os tempos de guerra, foi preenchido das mais variadas maneiras, desde quem jogava (e logo ao segundo dia de viagem um ingénuo soldado da minha companhia chorava ter gasto já todo o pouco dinheiro que os seus pais custosamente lhe tinham dado para aguentar os primeiros tempos enquanto não recebesse do Exército, pois jogara na banca de “viradinho” que o Bairro Alto, outro da Companhia, montara num convés ainda o navio descia o Tejo…), a quem ficava mergulhado o dia inteiro numa tristeza saudosista, passando por uns poucos, como eu, que repisavam isoladamente ou em pequenos grupos as estratégias a adoptar para os tempos que se aproximavam.
Valeu-nos – a mim e a mais dois ou três oficiais subalternos – haver no nosso Batalhão um capitão miliciano que era um homem de esquerda, com gostos e prática culturais, que transportava consigo no camarote um gira-discos a pilhas e vários LP’s de grande qualidade, com música de intervenção nacional e francesa, poesia portuguesa e brasileira, jazz, etc.. Aí passávamos horas de cavaqueira ou apenas de muda audição.
Uma canção ali ouvida, “Johnnie”, pertencente ao LP «Le Déserteur et 13 autres chansons pacifistes», teve então para mim um significado muito especial, pois falava exactamente dum camponês ignorante e ingénuo retirado da sua terra natal para ir combater numa qualquer guerra da qual desconhecia os objectivos, tal como um grande número (a maioria?) dos que nós comandávamos.
Pergunto-me, hoje como então, quantos para além dos oficiais superiores (majores, tenente-coronéis e coronéis), seriam os que connosco navegavam e que consigo levavam o propósito propalado pelo Regime de defender o Império, o “Portugal do Minho a Timor”? Recordo-me dum comentário que me fez um alferes da minha Companhia, aquele de nós que menos contestava esta nossa participação na guerra colonial, “é absurda e ridícula esta nossa situação de sairmos de Lisboa com um único objectivo: o de regressarmos vivos e não estropiados, o de termos de ir passar dois anos da melhor maneira possível de modo a podermos voltar àquilo que nos interessa verdadeiramente. É como se suspendêssemos a nossa vida por dois anos”.
Entretanto, fomos navegando sempre sem a costa à vista (“em círculos”, disse-me o imediato, “para despistar o inimigo, cumprindo as ordens do comodoro” que chefiava as forças embarcadas…), até fazermos as habituais escalas em Luanda e em Lourenço Marques, actual Maputo – onde recebemos as armas e o equipamento pessoal – e desembarcarmos em Nacala, final da segunda etapa da viagem.
A Nacala seguiram-se três dias de comboio para percorrer os setecentos e tal quilómetros de via férrea até Vila Cabral, actual Lichinga, e capital da Província do Niassa, conhecida na gíria da tropa moçambicana pelo «estado de minas gerais»… Daqui eu ainda percorreria durante cerca de 20 horas os 60 Km que faltavam até Meponda, junto do Lago, estrada em que foram “picados” todos os palmos de terra que os rodados dos camiões haveriam de percorrer.
Mas o resto do Batalhão ainda embarcou nas LDM até Metangula (cerca de 80 km a norte) e duas companhias operacionais teriam de percorrer ainda por picadas minadas as dezenas de quilómetros que faltavam até Nova Coimbra e até ao Lunho (a do famoso cancioneiro) onde eu acabaria por ir parar dois meses depois, levando o meu pelotão em reforço dessa Companhia isolada e muito flagelada, mas a qual, em compensação era comandada pelo mesmo capitão que, no “Niassa”, nos abriu as portas do seu camarote e nos facultou a audição dos seus discos. E que ali de novo o fez!


Léxico: IAO – Instrução de Aperfeiçoamento Operacional; NT – Nossas tropas; LDM – Lanchas de Desembarque de Material

(*) Biografia de Jorge Pires da Conceição

FERNÃO DE MAGALHÃES

HERÓI OU TRAIDOR?

A menina dos olhos do primeiro ministro José Sócrates é o famoso computador que baptizou de Magalhães. Tem feito pelo mundo fora a maior das propagandas ao referido computador. Quanto ao computador não vou questionar ou elogiar o mérito ou demérito do mesmo, apenas questiono a escolha do nome para o famoso brinquedo didáctico – Magalhães. Saberá o primeiro ministro quem foi realmente Magalhães ou, como a generalidade dos portugueses, apenas sabe que fez a viagem de circum-navegação?
Que a generalidade ignore quem foi realmente Magalhães pode tolerar-se mas a um primeiro ministro deve exigir-se um pouco mais de conhecimento. Também ninguém do seu governo sabia mais que o primeiro ministro, acerca daquela figura histórica, aconselhando-o a escolher outro nome? Sim, porque o nome escolhido corresponde a um dos piores traidores da Pátria portuguesa. Talvez mesmo o pior de quantos já houve em Portugal pois, além da traição em que apenas buscou o lucro pessoal, quase lançou Portugal numa guerra, de consequências imprevisíveis, contra Castela.

Fernão de Magalhães, cuja naturalidade ainda não está esclarecida, pois, para uns é natural de Sabrosa, para outros é natural de Ponte da Barca e, para outros ainda, é natural do Porto, terá nascido no ano de 1480. Isto porque quando foi para a Índia, em 1505, tinha vinte e cinco anos.
Esteve na Índia, como disse, donde regressou em 1513 e esteve também em África, após aquela data. Participou ou não na tomada de Azamor? Talvez sim! Talvez não! A verdade é que a tomada daquela praça se verificou em Setembro de 1513 e a (má) referência que lhe é feita, em África, reporta-se a 1514.
Embora alguns escritos lhe queiram atribuir, tanto num como no outro lugar, as honras de grande marinheiro e valente soldado, a verdade é que nas crónicas da época apenas é referido, muito brevemente, em três episódios. Dois, por boas acções, na Índia, e um, por maus motivos, em África.
Quanto aos feitos na Índia limitam-se a, por duas vezes, juntamente com outros marinheiros, socorrer Francisco Serrão a quem evitaram a morte. Este Francisco Serrão, de quem ficou amigo, foi o descobridor das Ilhas Malucas e quem convenceu Fernão de Magalhães que aquelas ilhas estariam já na parte castelhana, resultante da partilha do mundo pelo Tratado de Tordesilhas.
Em África, as únicas coisas que se sabem de Magalhães são:
- Foi ferido por uma lança, numa perna, que o deixou a mancar até ao fim dos seus dias;
- Foi quadrilheiro-mor (fiel depositário), juntamente com outro português, do saque efectuado numa vila próxima de Azamor. Esse saque era constituído, no essencial, por duas mil cabeças de gado. Segundo as crónicas da época, Magalhães e o companheiro, terão vendido aos mouros quatrocentas cabeças do gado à sua guarda.
Magalhães, sem licença do Capitão-Mor de Azamor, veio a Portugal e requereu a D. Manuel o aumento da sua moradia em 200 reis (dois tostões).
Moradia era a “pensão de alimentos” que o rei pagava a quantos serviam na sua corte e o seu valor era estabelecido em função da nobreza ou fidalguia de cada um ou dos feitos realizados ao serviço do rei. Era um costume de tal modo estabelecido que a nobreza, fidalguia ou valor honorífico eram aferidos pelo valor da moradia. Era uma honra que todos disputavam e o seu aumento era sempre motivo de orgulho e vaidade para o beneficiário. Quanto mais alta a moradia maior o conceito que se fazia do seu titular.
Porque razão pediu Magalhães este aumento de moradia é uma incógnita. Terá feito alguma acção digna desse aumento? Os relatos da época não referem nada. Terá sido apenas pelo facto de ter sido ferido? É uma hipótese que não pode ser posta de lado.
O certo é que D. Manuel, que entretanto soube da sua vinda sem licença e do caso do desvio do gado, recusou o aumento que Magalhães requeria. Este, argumentou que não era verdade e que esse boato fora posto a correr por pessoas invejosas que lhe queriam mal. O rei mandou-o a Azamor e que lhe trouxesse provas de que era inocente daquela acusação. Magalhães foi a Azamor e voltou com as provas da sua inocência, porém, o rei não acreditou nas provas exibidas e manteve a recusa do aumento da moradia.
Segundo outra versão da época D. Manuel acederia a um aumento de apenas 100 reis (um tostão) que Magalhães recusou.
Magoado e ofendido, Magalhães, que já teria esta ideia a germinar há muito tempo na cabeça, pensou em vingar-se do que ele considerava uma afronta. Desnaturalizou-se, juridicamente, português e dirigiu-se a Castela onde persuadiu a corte castelhana de que as ilhas das especiarias (Ilhas Malucas) estavam situadas na parte castelhana e Portugal estaria nelas por usurpação. Para o provar oferecia-se para chegar até àquelas ilhas navegando por Ocidente, fora dos mares de domínio português. Foram levadas a cabo inúmeras tentativas de o demover daquela empresa que iria, inevitavelmente, lançar a discórdia entre os reinos de Portugal e Castela. Magalhães hesitou mas acabou por falar mais alto a promessa de avultados lucros prometidos pela corte castelhana.
Magalhães fez a viagem que acabou por culminar na circum-navegação da terra, mundialmente aclamada. Passou nas Ilhas Malucas, então na posse dos portugueses, mas que a partir daí passaram a ser reivindicadas pelos castelhanos. Portugal não abdicou das ilhas que descobrira e tomara muitos anos antes e esteve por um fio a guerra entre portugueses e castelhanos. Foram necessários redobrados esforços diplomáticos para evitar a guerra entre os dois reis que, por sinal, até eram primos. As relações entre os dois reinos ficaram tensas e só no reinado de D. João III se acalmaram porque este pagou, humilhantemente, uma avultada quantia para continuar na posse daquelas ilhas que afinal se situavam na parte portuguesa.
Que Magalhães efectuou um feito extraordinário não resta qualquer dúvida. Que Castela teve motivos para as enormes aclamações que foram feitas, também não resta qualquer dúvida. Que o mundo celebre ainda hoje o feito extraordinário daquela época, tudo bem. Mas terá Portugal motivos para se associar a estas manifestações? Não as pode ignorar certamente mas daí até entrar na procissão de enaltecimento vai ainda alguma distância.
Magalhães era Português sim senhor, mas um português que cometeu para com a sua pátria o pior dos crimes que se podem cometer – a traição. Se esta traição não tivesse outras consequências para além do lucro pessoal que Magalhães buscava, até seria desculpável a euforia em torno dele. Mas, Magalhães, cometeu conscientemente um crime, o pior dos crimes, sabendo que podia, como quase aconteceu, arrastar Portugal para uma guerra cujas consequências eram imprevisíveis. Por muitos elogios que o mundo lhe faça, Magalhães foi, para Portugal, um traidor que se vendeu pelo ridículo valor de dois tostões. Ou seria apenas por um Tostão?
Vendeu-se, duma ou outra forma, por um prato de lentilhas.
Todas as crónicas e livros publicados até ao século XIX tratam Magalhães como o mais vil dos traidores que, pelo mísero valor de 200 reis (ou apenas 100 reis ?), traiu a Pátria, renegou a família e amigos vendendo-se a Castela e colocando Portugal em grande perigo. Até Camões, no Canto X, enaltecendo o feito, não deixa de referir a traição cometida por Magalhães – português sim mas não na lealdade.
Vila Real, 21 de Dezembro de 2008.

Amadeu Carvalho


Este artigo baseou-se nas seguintes obras:
Grandes Viagens Marítimas de Luís Albuquerque e Francisco Contente Domingos
Historia do Descobrimento e Conquista da Índia Pólos Portugueses de Fernão Lopes de Castanheda
Décadas da Ásia de João de Barros
Commentarios do grande Afonso Dalboquerque
Damião de Góis in História de Portugal por António de Morais Silva

1 -Como se faz um padeiro

O Santos, para evitar “complicações” que lhe tinham surgido, resolveu “fugir” de França e foi apresentar-se à unidade militar que lhe tinham indicado. Era refractário, o que iria constar da sua caderneta militar, e este ferrete apenas poderia ser “lavado” com um bom comportamento e de preferência algum louvor durante a carreira militar que o esperava. Fez a recruta e a seguir, pela ordem natural das coisas, “saiu-lhe” a especialidade - Sapador.
Ao saber a especialidade o Santos pôs em causa, pela primeira vez, a sua habilidade para o jogo. Arriscara e, ao que tudo indicava, a sorte não estava do seu lado. De todas as especialidades esta era das que, no entender do Santos, era meia certidão de óbito. Sapador! Armadilhar pontes, armadilhar trilhos, colocar minas. Desarmadilhar pontões e trilhos, levantar minas anti-pessoais e anti-carro. O mais certo, com tantas minas e armadilhas, era alguma rebentar e lá se vai o Santos!
Tinha muitas dúvidas, muitas mesmo, sobre a opção tomada. Se calhar o melhor era ter ficado em França. Mas agora não adiantava nada lamentar-se o que estava feito, estava feito. E toca a andar. Podia ser que afinal até nem fosse tão mau. Logo se veria!
Estava o batalhão a formar-se em Santa Margarida onde, uns após outros, iam chegando os militares de acordo com as especialidades e postos. Quatro companhias operacionais e a CCS (Companhia de Comando e Serviços). O Santos pertencia ao pelotão de sapadores da CCS.
Um dia, na formatura do início da tarde, o Comandante de Companhia, um capitão, pergunta se alguém sabe alguma coisa de chapeiro, para além do chapeiro, claro. O Santos, sem hesitar como se estivesse à espera daquela pergunta, levanta logo o braço e diz:
- Sei eu, meu capitão.
- Ah sim! Diz o capitão. - Então vais com os mecânicos para a oficina e vais ajudar o chapeiro, que precisa de alguém para o serviço que tem. Vê lá se tomas conta do recado.
- Sim senhor, meu capitão. - Responde o Santos.
A verdade é que o Santos nunca tinha pegado num martelo para desempenar o quer que fosse. Nem fazia a mínima ideia. Para maior azar, o Chapinha (como era conhecido o chapeiro da companhia) não era flor que se cheirasse. Era um malandreco da Banharia, no Porto, que não primava pela camaradagem e pouco amigo de fazer favores. O Santos que já tinha “topado” o Chapinha tentou levá-lo às boas e granjear a sua amizade e colaboração. A primeira mossa que o Santos tentou desempenar foi pior a emenda que o soneto. A pequena mossa, não tardou, parecia um enorme rombo. Cada pancada do martelo, em vez de diminuir, aumentava o estrago. O Chapinha em vez de ajudar, ensinando, gozava e criticava.
- Eras tu o que sabia de chapeiro? Por este andar temos aqui um monte de sucata pior do que quando veio.
O Santos bem tentou demovê-lo, mas qual quê!
- Não te armasses em esperto, agora desenrasca-te. – Dizia-lhe o Chapinha.
O Santos percebeu logo que não era por ali que a sua sorte iria ser modificada. Chapeiro não iria ser, de certeza, o seu futuro. Lá teria que voltar a ser sapador como os outros. Maldita sorte!
Passados poucos dias, na mesma formatura do início da tarde, o capitão, com a companhia formada, pergunta:
- Quem sabe alguma coisa de padeiro?
- Sei eu, meu capitão. - Responde o Santos sem hesitar um segundo sequer.
O capitão ao ver de novo o Santos a oferecer-se para nova tarefa, exclamou:
- Tu afinal sabes de tudo! Já foste padeiro?
- Eu trabalhei numa panificadora, meu capitão.
- E então o que é que tu sabes?
- Bem! - Gaguejou o Santos. - Sabe como é meu capitão, era tudo automático, carregava-se num botão saía a farinha, noutro botão saía a água, noutro botão misturava-se a farinha com a água, aquilo depois de bem batido ia por um tapete rolante onde levedava e depois …(o Santos só carregava em botões)
- Bem, bem. Interrompeu-o o capitão. - Sempre sabes alguma coisa. Vais para o Entroncamento, para a Manutenção Material, trabalhar com os padeiros de lá. Vê lá se abres bem os olhos e aprendes pois vais passar a ser o padeiro da companhia.
O Santos pensou que lhe tinha saído a lotaria. Afinal a sorte não o abandonara e parecia sorrir-lhe de novo.
Passou duas semanas no Entroncamento. Foi quanto bastou! O Santos era tudo menos burro. Interessou-se pelo fabrico do pão. Quis saber as quantidades de farinha, de água, de sal, de fermento, o tempo de levedura, o tempo de cozedura, tudo, tudo.
Quando regressou à companhia para o embarque rumo ao desconhecido podia dizer-se que o Santos era quase um padeiro.
Já no barco, o famoso Niassa, que era um bom navio para transporte de gado, o Santos foi ter com o capitão e sugeriu-lhe que arranjasse maneira de o colocar junto aos padeiros do barco, pois sempre aprenderia mais alguma coisa. As duas semanas no Entroncamento foram boas mas não fora muito tempo.
- Bem pensado, rapazinho. Eu vou falar com o comandante do barco. - Disse o capitão em resposta à sugestão do Santos.
Lá foi o Santos parar à padaria do barco e aperfeiçoar a sua nova profissão. Aplicou-se de novo e com afinco. Os padeiros do barco ficaram contentes por ter assim um voluntário a ajudá-los, pelo que lhe ensinaram tudo o que puderam. Quando a viagem acabou já tínhamos padeiro.





Milton Sá

2 -O Forno não aquece

Diariamente lá vinha o Santos trazer o pão à messe de sargentos e à messe dos oficiais. Vinha mais para ver como corriam as coisas, para ver se apanhava alguma “boca” sobre a qualidade da obra. Tudo bem, os comentários, se os havia, não eram maus de modo a preocupar o nosso padeiro.
Tudo corria sobre rodas, o Santos era um ex-sapador transformado em padeiro.
Um dia o raio do forno recusou-se a aquecer. A lenha era verde e teimava em não arder. A hora do pão sair aproximava-se e o raio do forno só tinha fumo, quanto ao calor, nem vê-lo. O tempo passava e … nada. A oficina era mesmo ali ao lado e havia sempre por ali latas com gasóleo. Nem hesitou, foi buscar uma lata com gasóleo e, duma assentada, espetou com ela dentro do forno. Remédio santo! Acendeu-se toda a lenha duma maneira que o forno parecia a fornalha do navio a toda a pressão. O Santos e o forneiro tiveram que se afastar pois o calor era tanto que não aguentavam estar perto da fornalha. Consumida a lenha o forno ficou rapidamente no ponto para mais uma fornada. E aí vai disto!
Cozido o pão lá foi o Santos na rotina diária fazer a entrega, primeiro à companhia que tomava sempre o pequeno-almoço mais cedo, depois à messe de sargentos e, por fim, à messe de oficiais.
Quando os soldados começaram a tomar o pequeno-almoço começaram as exclamações. - Esta porcaria só sabe a petróleo! – Dizia um.
- Em vez de água puseste petróleo na farinha? – Dizia outro.
- Que coma o padeiro o pão a ver se gosta! Bolas, não se consegue comer, até fica a boca a saber a petróleo!
O Santos ao ouvir estas exclamações entrou em pânico. “Meu Deus”, pensou ele, “o que eu arranjei com a porcaria do gasóleo”!
Foi de imediato ter com o forneiro, cujo nome ignoro (lamento) e disse-lhe:
- Estamos perdidos. Temos que fazer de imediato vinte pães e a toda a pressa.
- Vinte pães!? Exclamou o forneiro, intrigado. Se faziam diariamente mais de trezentos para que serviam vinte pães?
O Santos, preocupado, mas sem perder o tino à coisa, exclamou logo:
- São os que são precisos para o pequeno-almoço dos oficiais. Para o almoço fazemos nova fornada.
- Então, e os outros? Vão comer o pão assim?
- Paciência! Os oficiais é que não podem dar conta que o pão sabe a gasóleo ou então estou perdido. Com os outros é mais barulho menos barulho, mas não passa disso.
Numa corrida foi à messe de oficiais buscar o pão que lá tinha deixado, dizendo ao faxina que voltaria dentro de pouco tempo com novo saco de pão, que se tinha enganado e aquele não era para ali.
Dentro de pouco tempo novo saco de pão, com o mínimo indispensável para o pequeno-almoço, estava na messe de oficiais e o Santos respirava de alívio. Bem reclamaram os soldados, cabos, furriéis e sargentos, mas que adiantaram! O Santos desculpava-se como podia atribuindo as culpas ao forno que tinha um problema e não ardia. O certo é que ao almoço o pão já tinha o seu gosto normal, devido à nova fornada, e o incidente acabou por ser esquecido e, para alguns, os oficiais, nem sequer chegou a haver incidente nenhum. O Santos podia dormir descansado!
Milton Sá

3 -Ataque à padaria

Havia um problema que germinava na cabeça do Santos há já algum tempo. O quartel era um quadrado vedado a arame farpado. Em três cantos desse quadrado havia uma sentinela que, pela posição em que se encontrava, dominava à vista, um dos lados desse … triângulo! Num dos cantos não havia qualquer sentinela e, por acaso, era precisamente o canto em que se encontrava a padaria. O Santos andava a ruminar sobre este “enigma” há muito tempo. Porque é que nos outros três cantos há uma sentinela e neste não há nenhuma? Alguma coisa estava errada! Se algum dia houver algum problema, um ataque, por onde é que eles hão-de vir? Não era difícil de descobrir, entrariam pelo lugar onde não há nenhuma sentinela. Não, não estava certo! Sentinelas em todos os cantos e naquele não, porquê?
O Santos dava-se muito bem, por serem da mesma terra, com o furriel Artur e também se dava bem com o furriel Carvalho, muito amigo do furriel Artur. Foi falar com ambos e procurar que estes exercessem alguma pressão sobre o Tenente da companhia no sentido de colocar uma sentinela no canto da padaria.
Dada a pacatez e sossego do sítio em que nos encontrávamos, que, por ser uma península, no belíssimo Lago Niassa, encontrava-se quase naturalmente defendido. Isto é, num caso de ataque, só havia um sítio para entrar e, do mesmo modo, um sítio para sair. Seria muito difícil arriscar ali um ataque sabendo que o único sítio para sair seria imediatamente cortado. Os guerrilheiros não eram propriamente talibãs suicidas. Faziam as coisas planeadas e nestes planos também entrava a sua segurança. A situação era tão calma que a messe de sargentos, junto à estrada por onde passava toda a população, não tinha qualquer sentinela, nem precisava.
Ambos os furriéis procuraram fazer-lhe ver a inutilidade de uma sentinela naquele lugar e a sobrecarga, em serviços, que tal acarretaria. O Santos é que não se convencia. Sentinelas nos outros cantos e nenhum no canto da padaria. Não podia ser!
- Já viu furriel, se um dia eles se lembram de vir por aí, lá vai o padeiro.
- Não pense nisso. Julga que eles são malucos e vêm assim sem mais nem menos. E depois por onde saem? Está a ver que nós aqui nem sentinela temos!
- Eu sei lá! O certo é que não durmo descansado. O Furriel podia falar com o Tenente.
- Deixe-se disso! Já há tanta gente a alinhar todos os dias e ainda quer mais três? Nem pense nisso que o Tenente não vai na conversa. – (Cada posto de sentinela obriga a três soldados que fazem turnos de 2 horas, fazendo cada um 2 turnos.)
Face às escusas dos furriéis com quem tinha mais confiança foi falar com o 1º Sargento Gomes que também não lhe fez boca doce. Ganhou coragem e foi falar com o Tenente que comandava a companhia. Expôs-lhe a situação mas o Tenente, com o seu ar sarcástico, disse-lhe para ter juízo. Tantos problemas com o pessoal de serviço diário e ainda ia arranjar mais sentinelas.
- Se tens medo fica tu de sentinela à padaria! – Disse-lhe o Tenente.
O Santos ficou desiludido. É certo que não tinha muita esperança de conseguir o que queria., mas havia sempre uma hipótese… Nada feito. O Tenente não foi na conversa.
O certo é que o Santos, embora desiludido, não deixou de pensar no assunto.
O tempo foi passando até que uma noite, ainda cedo, se ouviu inesperadamente um tiro vindo dos lados das oficinas e da padaria. Apanhados de surpresa, alguns soldados que se encontravam à conversa nas camaratas, saltaram da cama e, pegando de imediato as armas que estavam sempre à cabeceira, saíram dirigindo-se para aquele lado do quartel. Alguns à saída das camaratas começaram a disparar para o ar, para espantar o medo e ganhar coragem. Outros fizeram o mesmo e muitos disparavam para o ar, encorajando-se mutuamente, enquanto se dirigiam para o sítio de onde lhes parecia ter vindo o tiro, junto à padaria.
Pendurada numa árvore, no meio do quartel, havia uma mola em aço da suspensão de um camião e no meio da mola, preso por um arame, um ferro que servia de badalo ao sino improvisado. Esta mola que servia de sineta era usada para chamar o pessoal para as formaturas, nomeadamente o piquete. Alguém tocou desenfreadamente a “sineta” aumentando o barulho que era por esta altura ensurdecedor.
Chegados junto da padaria, no escuro, dirigiram os tiros para o descampado que descia pela encosta até ao lago. Muitos soldados que se encontravam fora do quartel, uns nos dois bares existentes e outros no quartel da marinha, acorreram ao quartel e pegando nas suas armas juntaram-se aos outros aumentando o tiroteio. As balas batendo nos arbustos e pedras faziam barulhos esquisitos e davam a sensação de que alguém andaria por ali. E o fogo aumentava de intensidade. A certo ponto, no meio desta confusão, ouviu-se o ganido de um cão e logo alguém exclamou:
- Trazem cães e tudo!
A esta exclamação recrudesceu o tiroteio que era já infernal. A fuzilaria dirigia-se agora sobretudo para a borda do lago que distaria do quartel uns duzentos metros. Um ataque feito daquele lado só poderia ter a sua origem no lago. Teriam vindo com pirogas?
Como já iam decorridos uns bons quinze minutos sem que o fogo cessasse, do quartel da marinha saiu um lancha rápida e veio patrulhar o lago e as suas margens. Com um potente holofote varreu as águas e a praia em busca dos eventuais invasores. Nada!
O tiroteio cessou quando a lancha se aproximou do local em que se presumia estarem os invasores para se evitar que alguma bala a atingisse. A lancha continuou a sua busca mas, nem rasto de qualquer guerrilheiro. Depois de bem esquadrinhada a margem e o lago foram as buscas suspensas e dado como terminado o “ataque”.
Logo o Tenente ordenou que se pusessem ali sentinelas. O Sargento da companhia nomeou “ad hoc” três soldados para aquele lugar e a partir daquele dia estava criado mais um posto de sentinela.
No dia seguinte, ao ver o Santos, os furriéis Artur e Carvalho, brincavam com este, dizendo:
- Oh Santos, foi cá um susto! Ainda está pálido. Desta vez é que ficávamos sem padeiro.
- Estão a ver!? Eu não dizia? Diziam que não havia problemas e o padeiro ia embarcando.
- Mas agora já está mais descansado, tem ali sentinelas como queria.
- É verdade Furriel, agora durmo a noite toda de um sono só. Finalmente!
De tempos a tempos, em brincadeira com o Santos, evocava-se o famoso ataque à padaria. E o Santos alinhava na brincadeira. Até que um dia, em que o Santos já estava mais seguro e face à confiança que depositava no Furriel Carvalho, lhe confidenciou:
- Oh Furriel, sabe o que foi aquilo?
- Sei lá! Alguém que disparou um tiro sem querer.
- Eu vou-lhe contar, mas o Furriel sabe como é, isto fica só entre nós.
O Furriel que conhecia mais ou menos bem o Santos ficou intrigado por saber o que é que ele teria feito desta vez.
- Foi assim! Falei consigo e com o Furriel Artur para arranjarem um sentinela para aquele canto e, nada! Falei com o Sargento e, nada! O mesmo aconteceu com o Tenente. Ninguém quis saber e até me gozaram. Pois bem, naquela noite, com o forno já quente, meti lá dentro uma bala e fui para o bar. O calor do forno fez o resto, quando a bala aqueceu acabou por rebentar. O resto aconteceu como você sabe! Só tive algum receio que a bala desse cabo do forno e se descobrisse a manobra. Mas felizmente o forno aguentou.
O Furriel ria-se a bandeiras despregadas. Só mesmo o Santos para engendrar, e levar a cabo, uma marosca daquelas. Mas, do Santos havia que esperar tudo.
O segredo ficou guardado e só hoje é posto aqui.

4 -O Santos no Lunho

“LUNHO, O INFERNO ONDE OS ANJOS RIEM”
(Notícias de Moçambique)


Chegados a Metangula, a 12 de Agosto de 1971, durante alguns dias ficamos ocupados com a transferência de materiais, da companhia que íamos render, para a nossa. Acabada esta entrega, e dados todos os conselhos pelos “velhinhos”, ali ficamos entregues a nós próprios, “checas” sem experiência nenhuma. A CCS (Companhia de Comando e Serviços) em Metangula, e as companhias operacionais foram distribuídas por Maniamba, Nova Coimbra e Lunho. Lunho (O inferno onde os anjos riem) era sem dúvida o pior sítio. Foi aqui, segundo se contava, que a companhia do ciclista Joaquim Agostinho, foi atacada e, pelo número de baixas sofridas, foi considerada inoperacional e retirada de zonas de guerra. Esta retirada das companhias acontecia porque uma companhia que tivesse muitas baixas ficava psicologicamente afectada a tal ponto que não podia combater mais, sob pena de causar problemas psicológicos a todos para o resto da vida.
Dizia-se até, por brincadeira, que ele ganhara a preparação física que tinha, como ciclista, a fugir dos “turras”. (Esta história carece de confirmação pois o Lunho nem sequer existiria no tempo em que Joaquim Agostinho andou pelo Niassa.)
Aproximou-se o 25 de Setembro, dia da Frelimo. Nesta data era normal a Frelimo efectuar algum ataque que desse muito estrilho, até na nossa imprensa controlada pela PIDE. Todos os quartéis redobravam a prevenção ou, pelo menos, tinham instruções para isso.
No dia 23, por volta das 3 da manhã, desencadeou a Frelimo um ataque, em forma, contra o Lunho. Por acasos que não vou colocar aqui, agora, o ataque, que tinha a finalidade clara de tomar o quartel, acabou por se gorar. Por acaso! Os acasos foram determinantes em muitas situações, umas vezes para nosso bem, outras para nosso mal. Desta vez o acaso funcionou a nosso favor.
Era evidente que este ataque tinha sido maduramente pensado e congregara um elevado número de guerrilheiros e o objectivo era tomar o quartel. A acontecer, isto daria novo ânimo aos guerrilheiros e, naquela zona, a guerra aumentaria de intensidade. Felizmente as coisas correram bem e nem sequer houve feridos da nossa parte. Já o mesmo não se pode dizer da Frelimo que acabou por ter cinco mortos de imediato e dois em função dos ferimentos sofridos.
No dia seguinte ainda houve nova “réplica” mas sem o poder e eficácia do dia anterior.
Face a este ataque resolveram as altas patentes da guerra dar uma resposta à medida da “afronta” sofrida.
Foi então planeada uma operação que contava com cinco ou seis companhias de caçadores, uma companhia de GEs (Grupos Especiais formados por naturais de Moçambique) comandada pelo célebre Biguane (Big One), uma companhia de paraquedistas, uma companhia de fuzileiros e ainda o grupo do Roxo.
O Roxo era um mercenário, de Macedo de Cavaleiros, que tinha uma companhia de noventa homens, todos, ou quase todos, ex-guerrilheiros da Frelimo. Actuava normalmente com cinquenta, ficando os restantes em Vila Cabral no seu quartel.
De Metangula seguiu para o Lunho, em colunas, todo o apoio logístico para a operação. Neste apoio logístico calhou ao Santos ser nomeado padeiro para fazer o pão para as companhias que não pertenciam ao batalhão. Ao Furriel Carvalho, mecânico de armamento, “reclassificado” em Furriel de reabastecimentos, coube fazer o reabastecimento da operação.
Segundo as instruções que o Furriel Carvalho recebera cabia ao Santos fazer o pão para os fuzileiros, para os paraquedistas, para os GEs, para a companhia de Macaloge (que por acaso até trouxera consigo um padeiro), para a companhia de Meponda e ainda para o grupo do Roxo. Isto é, o Santos tinha a seu cargo fazer o pão para cerca de metade do pessoal envolvido na operação. Dos restantes, cada companhia tinha o seu próprio padeiro.
Quando o Santos soube que ia para o Lunho ficou apreensivo. Logo o Lunho! E fazer pão para tanta gente!?
- Mau, mau. – Exclamou. – Agora que as coisas estavam a correr tão bem sai-me o Lunho na rifa!
Mas não havia nada a fazer e um dia lá foi o Santos integrado numa das colunas que então se fizeram, com a farinha e as rações necessárias para a operação.
Passados dois dias foi a vez do Furriel Carvalho. A operação teria lugar dois dias depois, logo pela manhã. O dia seguinte seria de ultimação dos pormenores para que tudo corresse como planeado e, claro, fazer o pão para todo aquele pessoal.
Estava a coluna, onde ia o Furriel Carvalho, a chegar ao Lunho, quando este ouviu alguém a chamá-lo em altos brados.
- Furriel Carvalho, Furriel Carvalho.
Ficou surpreendido pois naquela companhia só conhecia bem, dos tempos de escola, o seu amigo Furriel Lapa. E este não se lhe dirigiria daquela maneira mas sim pelo nome próprio.
Olhou à procura da origem dos brados e lá descobriu o Santos no meio de outros soldados que se acercavam das viaturas por mera curiosidade.
- Furriel. – Insistia o Santos. - Preciso de falar consigo.
- Bolas! Oh Santos, nem deixa o camião parar e assentar o pó,! Qual é a urgência?
- Preciso de falar consigo antes que fale com mais ninguém. – Disse o Santos, agora em tom mais baixo pois já se encontrava perto do Furriel.
- Assim, com tanta urgência?
-Tem que ser antes que se meta alguma argolada.
O Furriel desceu da viatura, tirou o lenço que protegia a boca e o nariz, do pó da picada, e sacudiu o pó da farda com o “quico”. Feito isto dirigiu-se ao Santos para saber qual era a urgência.
- Diga lá, o que se passa?
- Furriel, se alguém lhe perguntar diga que eu só vim para pesar a farinha.
- Como!? – Exclamou o Furriel, espantado com tão estranho pedido que contrariava em absoluto as ordens que recebera.
- Oh Furriel, está tudo controlado. Já falei com os padeiros e disse-lhes que eu vinha para pesar a farinha em função dos homens que o Furriel me disser. Tantos homens, tantos pães, tantos pães, tantos kilos de farinha e está feito.
- Mas as coisas não são assim e você sabe-o bem!
- Furriel, já os convenci. Disse-lhes que vinha para pesar a farinha mas que não queria ficar a olhar enquanto eles trabalhavam e por isso também ajudaria a fazer o pão.
- Ah, você é que os ajuda?
- Bah, Furriel, a tropa manda desenrascar! Ficaram tão contentes por eu os ajudar que sempre que vou ao bar algum deles é que paga sempre a minha cerveja.
- Ainda, por cima!?
- Furriel, não me estrague o arranjinho senão estou tramado.
- Por mim não é, que o arranjinho se vai estragar. – E não estragou.
Nas datas previstas lá aparecia o Santos e os restantes padeiros com os sacos de pão para o reabastecimento. O Santos piscava-me o olho e fazia o seu papel com a maior desenvoltura. Até parecia que tinha sido ele a cozinhar todo aquele pão.
O Furriel Carvalho ria-se interiormente sem que ninguém se apercebesse da fita que se ali passava. Admirava sobretudo a naturalidade com que o Santos agia. Era como se fosse assim mesmo e estivesse a cumprir escrupulosamente as ordens recebidas. Sem sobranceria, com modéstia até, nunca esboçando o mínimo sinal de esperteza ou superioridade. Era o Santos tal e qual como sempre foi – fino como uma abelha mas até no bater de asas era discreto para não chamar a atenção.
Acabada a operação regressaram. O Santos deixou vários amigos, aqueles a quem “ajudara”, gratos pela “ajuda” e camaradagem que demonstrara.
Nunca, nem mesmo com o Furriel Carvalho, teve uma palavra de gabarolice do feito realizado. Estava feito e mais nada. Com a maior simplicidade deste mundo.
O Santos passou ali duas semanas que se não fosse o isolamento e alguma tensão que andava sempre no ar, poderíamos considerar de férias.
Ah grande Santos!