4 -O Santos no Lunho

“LUNHO, O INFERNO ONDE OS ANJOS RIEM”
(Notícias de Moçambique)


Chegados a Metangula, a 12 de Agosto de 1971, durante alguns dias ficamos ocupados com a transferência de materiais, da companhia que íamos render, para a nossa. Acabada esta entrega, e dados todos os conselhos pelos “velhinhos”, ali ficamos entregues a nós próprios, “checas” sem experiência nenhuma. A CCS (Companhia de Comando e Serviços) em Metangula, e as companhias operacionais foram distribuídas por Maniamba, Nova Coimbra e Lunho. Lunho (O inferno onde os anjos riem) era sem dúvida o pior sítio. Foi aqui, segundo se contava, que a companhia do ciclista Joaquim Agostinho, foi atacada e, pelo número de baixas sofridas, foi considerada inoperacional e retirada de zonas de guerra. Esta retirada das companhias acontecia porque uma companhia que tivesse muitas baixas ficava psicologicamente afectada a tal ponto que não podia combater mais, sob pena de causar problemas psicológicos a todos para o resto da vida.
Dizia-se até, por brincadeira, que ele ganhara a preparação física que tinha, como ciclista, a fugir dos “turras”. (Esta história carece de confirmação pois o Lunho nem sequer existiria no tempo em que Joaquim Agostinho andou pelo Niassa.)
Aproximou-se o 25 de Setembro, dia da Frelimo. Nesta data era normal a Frelimo efectuar algum ataque que desse muito estrilho, até na nossa imprensa controlada pela PIDE. Todos os quartéis redobravam a prevenção ou, pelo menos, tinham instruções para isso.
No dia 23, por volta das 3 da manhã, desencadeou a Frelimo um ataque, em forma, contra o Lunho. Por acasos que não vou colocar aqui, agora, o ataque, que tinha a finalidade clara de tomar o quartel, acabou por se gorar. Por acaso! Os acasos foram determinantes em muitas situações, umas vezes para nosso bem, outras para nosso mal. Desta vez o acaso funcionou a nosso favor.
Era evidente que este ataque tinha sido maduramente pensado e congregara um elevado número de guerrilheiros e o objectivo era tomar o quartel. A acontecer, isto daria novo ânimo aos guerrilheiros e, naquela zona, a guerra aumentaria de intensidade. Felizmente as coisas correram bem e nem sequer houve feridos da nossa parte. Já o mesmo não se pode dizer da Frelimo que acabou por ter cinco mortos de imediato e dois em função dos ferimentos sofridos.
No dia seguinte ainda houve nova “réplica” mas sem o poder e eficácia do dia anterior.
Face a este ataque resolveram as altas patentes da guerra dar uma resposta à medida da “afronta” sofrida.
Foi então planeada uma operação que contava com cinco ou seis companhias de caçadores, uma companhia de GEs (Grupos Especiais formados por naturais de Moçambique) comandada pelo célebre Biguane (Big One), uma companhia de paraquedistas, uma companhia de fuzileiros e ainda o grupo do Roxo.
O Roxo era um mercenário, de Macedo de Cavaleiros, que tinha uma companhia de noventa homens, todos, ou quase todos, ex-guerrilheiros da Frelimo. Actuava normalmente com cinquenta, ficando os restantes em Vila Cabral no seu quartel.
De Metangula seguiu para o Lunho, em colunas, todo o apoio logístico para a operação. Neste apoio logístico calhou ao Santos ser nomeado padeiro para fazer o pão para as companhias que não pertenciam ao batalhão. Ao Furriel Carvalho, mecânico de armamento, “reclassificado” em Furriel de reabastecimentos, coube fazer o reabastecimento da operação.
Segundo as instruções que o Furriel Carvalho recebera cabia ao Santos fazer o pão para os fuzileiros, para os paraquedistas, para os GEs, para a companhia de Macaloge (que por acaso até trouxera consigo um padeiro), para a companhia de Meponda e ainda para o grupo do Roxo. Isto é, o Santos tinha a seu cargo fazer o pão para cerca de metade do pessoal envolvido na operação. Dos restantes, cada companhia tinha o seu próprio padeiro.
Quando o Santos soube que ia para o Lunho ficou apreensivo. Logo o Lunho! E fazer pão para tanta gente!?
- Mau, mau. – Exclamou. – Agora que as coisas estavam a correr tão bem sai-me o Lunho na rifa!
Mas não havia nada a fazer e um dia lá foi o Santos integrado numa das colunas que então se fizeram, com a farinha e as rações necessárias para a operação.
Passados dois dias foi a vez do Furriel Carvalho. A operação teria lugar dois dias depois, logo pela manhã. O dia seguinte seria de ultimação dos pormenores para que tudo corresse como planeado e, claro, fazer o pão para todo aquele pessoal.
Estava a coluna, onde ia o Furriel Carvalho, a chegar ao Lunho, quando este ouviu alguém a chamá-lo em altos brados.
- Furriel Carvalho, Furriel Carvalho.
Ficou surpreendido pois naquela companhia só conhecia bem, dos tempos de escola, o seu amigo Furriel Lapa. E este não se lhe dirigiria daquela maneira mas sim pelo nome próprio.
Olhou à procura da origem dos brados e lá descobriu o Santos no meio de outros soldados que se acercavam das viaturas por mera curiosidade.
- Furriel. – Insistia o Santos. - Preciso de falar consigo.
- Bolas! Oh Santos, nem deixa o camião parar e assentar o pó,! Qual é a urgência?
- Preciso de falar consigo antes que fale com mais ninguém. – Disse o Santos, agora em tom mais baixo pois já se encontrava perto do Furriel.
- Assim, com tanta urgência?
-Tem que ser antes que se meta alguma argolada.
O Furriel desceu da viatura, tirou o lenço que protegia a boca e o nariz, do pó da picada, e sacudiu o pó da farda com o “quico”. Feito isto dirigiu-se ao Santos para saber qual era a urgência.
- Diga lá, o que se passa?
- Furriel, se alguém lhe perguntar diga que eu só vim para pesar a farinha.
- Como!? – Exclamou o Furriel, espantado com tão estranho pedido que contrariava em absoluto as ordens que recebera.
- Oh Furriel, está tudo controlado. Já falei com os padeiros e disse-lhes que eu vinha para pesar a farinha em função dos homens que o Furriel me disser. Tantos homens, tantos pães, tantos pães, tantos kilos de farinha e está feito.
- Mas as coisas não são assim e você sabe-o bem!
- Furriel, já os convenci. Disse-lhes que vinha para pesar a farinha mas que não queria ficar a olhar enquanto eles trabalhavam e por isso também ajudaria a fazer o pão.
- Ah, você é que os ajuda?
- Bah, Furriel, a tropa manda desenrascar! Ficaram tão contentes por eu os ajudar que sempre que vou ao bar algum deles é que paga sempre a minha cerveja.
- Ainda, por cima!?
- Furriel, não me estrague o arranjinho senão estou tramado.
- Por mim não é, que o arranjinho se vai estragar. – E não estragou.
Nas datas previstas lá aparecia o Santos e os restantes padeiros com os sacos de pão para o reabastecimento. O Santos piscava-me o olho e fazia o seu papel com a maior desenvoltura. Até parecia que tinha sido ele a cozinhar todo aquele pão.
O Furriel Carvalho ria-se interiormente sem que ninguém se apercebesse da fita que se ali passava. Admirava sobretudo a naturalidade com que o Santos agia. Era como se fosse assim mesmo e estivesse a cumprir escrupulosamente as ordens recebidas. Sem sobranceria, com modéstia até, nunca esboçando o mínimo sinal de esperteza ou superioridade. Era o Santos tal e qual como sempre foi – fino como uma abelha mas até no bater de asas era discreto para não chamar a atenção.
Acabada a operação regressaram. O Santos deixou vários amigos, aqueles a quem “ajudara”, gratos pela “ajuda” e camaradagem que demonstrara.
Nunca, nem mesmo com o Furriel Carvalho, teve uma palavra de gabarolice do feito realizado. Estava feito e mais nada. Com a maior simplicidade deste mundo.
O Santos passou ali duas semanas que se não fosse o isolamento e alguma tensão que andava sempre no ar, poderíamos considerar de férias.
Ah grande Santos!

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