3 -Ataque à padaria

Havia um problema que germinava na cabeça do Santos há já algum tempo. O quartel era um quadrado vedado a arame farpado. Em três cantos desse quadrado havia uma sentinela que, pela posição em que se encontrava, dominava à vista, um dos lados desse … triângulo! Num dos cantos não havia qualquer sentinela e, por acaso, era precisamente o canto em que se encontrava a padaria. O Santos andava a ruminar sobre este “enigma” há muito tempo. Porque é que nos outros três cantos há uma sentinela e neste não há nenhuma? Alguma coisa estava errada! Se algum dia houver algum problema, um ataque, por onde é que eles hão-de vir? Não era difícil de descobrir, entrariam pelo lugar onde não há nenhuma sentinela. Não, não estava certo! Sentinelas em todos os cantos e naquele não, porquê?
O Santos dava-se muito bem, por serem da mesma terra, com o furriel Artur e também se dava bem com o furriel Carvalho, muito amigo do furriel Artur. Foi falar com ambos e procurar que estes exercessem alguma pressão sobre o Tenente da companhia no sentido de colocar uma sentinela no canto da padaria.
Dada a pacatez e sossego do sítio em que nos encontrávamos, que, por ser uma península, no belíssimo Lago Niassa, encontrava-se quase naturalmente defendido. Isto é, num caso de ataque, só havia um sítio para entrar e, do mesmo modo, um sítio para sair. Seria muito difícil arriscar ali um ataque sabendo que o único sítio para sair seria imediatamente cortado. Os guerrilheiros não eram propriamente talibãs suicidas. Faziam as coisas planeadas e nestes planos também entrava a sua segurança. A situação era tão calma que a messe de sargentos, junto à estrada por onde passava toda a população, não tinha qualquer sentinela, nem precisava.
Ambos os furriéis procuraram fazer-lhe ver a inutilidade de uma sentinela naquele lugar e a sobrecarga, em serviços, que tal acarretaria. O Santos é que não se convencia. Sentinelas nos outros cantos e nenhum no canto da padaria. Não podia ser!
- Já viu furriel, se um dia eles se lembram de vir por aí, lá vai o padeiro.
- Não pense nisso. Julga que eles são malucos e vêm assim sem mais nem menos. E depois por onde saem? Está a ver que nós aqui nem sentinela temos!
- Eu sei lá! O certo é que não durmo descansado. O Furriel podia falar com o Tenente.
- Deixe-se disso! Já há tanta gente a alinhar todos os dias e ainda quer mais três? Nem pense nisso que o Tenente não vai na conversa. – (Cada posto de sentinela obriga a três soldados que fazem turnos de 2 horas, fazendo cada um 2 turnos.)
Face às escusas dos furriéis com quem tinha mais confiança foi falar com o 1º Sargento Gomes que também não lhe fez boca doce. Ganhou coragem e foi falar com o Tenente que comandava a companhia. Expôs-lhe a situação mas o Tenente, com o seu ar sarcástico, disse-lhe para ter juízo. Tantos problemas com o pessoal de serviço diário e ainda ia arranjar mais sentinelas.
- Se tens medo fica tu de sentinela à padaria! – Disse-lhe o Tenente.
O Santos ficou desiludido. É certo que não tinha muita esperança de conseguir o que queria., mas havia sempre uma hipótese… Nada feito. O Tenente não foi na conversa.
O certo é que o Santos, embora desiludido, não deixou de pensar no assunto.
O tempo foi passando até que uma noite, ainda cedo, se ouviu inesperadamente um tiro vindo dos lados das oficinas e da padaria. Apanhados de surpresa, alguns soldados que se encontravam à conversa nas camaratas, saltaram da cama e, pegando de imediato as armas que estavam sempre à cabeceira, saíram dirigindo-se para aquele lado do quartel. Alguns à saída das camaratas começaram a disparar para o ar, para espantar o medo e ganhar coragem. Outros fizeram o mesmo e muitos disparavam para o ar, encorajando-se mutuamente, enquanto se dirigiam para o sítio de onde lhes parecia ter vindo o tiro, junto à padaria.
Pendurada numa árvore, no meio do quartel, havia uma mola em aço da suspensão de um camião e no meio da mola, preso por um arame, um ferro que servia de badalo ao sino improvisado. Esta mola que servia de sineta era usada para chamar o pessoal para as formaturas, nomeadamente o piquete. Alguém tocou desenfreadamente a “sineta” aumentando o barulho que era por esta altura ensurdecedor.
Chegados junto da padaria, no escuro, dirigiram os tiros para o descampado que descia pela encosta até ao lago. Muitos soldados que se encontravam fora do quartel, uns nos dois bares existentes e outros no quartel da marinha, acorreram ao quartel e pegando nas suas armas juntaram-se aos outros aumentando o tiroteio. As balas batendo nos arbustos e pedras faziam barulhos esquisitos e davam a sensação de que alguém andaria por ali. E o fogo aumentava de intensidade. A certo ponto, no meio desta confusão, ouviu-se o ganido de um cão e logo alguém exclamou:
- Trazem cães e tudo!
A esta exclamação recrudesceu o tiroteio que era já infernal. A fuzilaria dirigia-se agora sobretudo para a borda do lago que distaria do quartel uns duzentos metros. Um ataque feito daquele lado só poderia ter a sua origem no lago. Teriam vindo com pirogas?
Como já iam decorridos uns bons quinze minutos sem que o fogo cessasse, do quartel da marinha saiu um lancha rápida e veio patrulhar o lago e as suas margens. Com um potente holofote varreu as águas e a praia em busca dos eventuais invasores. Nada!
O tiroteio cessou quando a lancha se aproximou do local em que se presumia estarem os invasores para se evitar que alguma bala a atingisse. A lancha continuou a sua busca mas, nem rasto de qualquer guerrilheiro. Depois de bem esquadrinhada a margem e o lago foram as buscas suspensas e dado como terminado o “ataque”.
Logo o Tenente ordenou que se pusessem ali sentinelas. O Sargento da companhia nomeou “ad hoc” três soldados para aquele lugar e a partir daquele dia estava criado mais um posto de sentinela.
No dia seguinte, ao ver o Santos, os furriéis Artur e Carvalho, brincavam com este, dizendo:
- Oh Santos, foi cá um susto! Ainda está pálido. Desta vez é que ficávamos sem padeiro.
- Estão a ver!? Eu não dizia? Diziam que não havia problemas e o padeiro ia embarcando.
- Mas agora já está mais descansado, tem ali sentinelas como queria.
- É verdade Furriel, agora durmo a noite toda de um sono só. Finalmente!
De tempos a tempos, em brincadeira com o Santos, evocava-se o famoso ataque à padaria. E o Santos alinhava na brincadeira. Até que um dia, em que o Santos já estava mais seguro e face à confiança que depositava no Furriel Carvalho, lhe confidenciou:
- Oh Furriel, sabe o que foi aquilo?
- Sei lá! Alguém que disparou um tiro sem querer.
- Eu vou-lhe contar, mas o Furriel sabe como é, isto fica só entre nós.
O Furriel que conhecia mais ou menos bem o Santos ficou intrigado por saber o que é que ele teria feito desta vez.
- Foi assim! Falei consigo e com o Furriel Artur para arranjarem um sentinela para aquele canto e, nada! Falei com o Sargento e, nada! O mesmo aconteceu com o Tenente. Ninguém quis saber e até me gozaram. Pois bem, naquela noite, com o forno já quente, meti lá dentro uma bala e fui para o bar. O calor do forno fez o resto, quando a bala aqueceu acabou por rebentar. O resto aconteceu como você sabe! Só tive algum receio que a bala desse cabo do forno e se descobrisse a manobra. Mas felizmente o forno aguentou.
O Furriel ria-se a bandeiras despregadas. Só mesmo o Santos para engendrar, e levar a cabo, uma marosca daquelas. Mas, do Santos havia que esperar tudo.
O segredo ficou guardado e só hoje é posto aqui.

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